sábado, 2 de outubro de 2010

Alexander Berkman – Algumas Remniscências de Kropotkin

ALGUMAS REMNISCÊNCIAS DE KROPOTKIN

ALEXANDER BERKMAN

Era por volta de 1890, quando o movimento anarquista na América estava ainda na infância. Até então contávamos com apenas meia-dúzia de jovens, homens e mulheres que ardiam de entusiasmos por um sublime ideal, e disseminavam apaixonadamente a boa nova entre a população de New York Ghetto. Realizávamos nossos encontros num obscuro salão na Orchard Street, mas considerávamos nossos esforços altamente bem-sucedidos. A cada semana um grande número comparecia às reuniões, manifestando um profundo interesse pelos ensinamentos revolucionários, e questões vitais eram discutidas noite adentro com profunda convicção e visão juvenil. Para muitos de nós, parecia que o capitalismo tinha quase alcançado os limites de suas demoníacas possibilidades, e a Revolução Social não estaria muito distante. Mas havia muitas questões difíceis e problemas intricados envolvidos no crescimento do movimento, os quais nós não conseguíamos resolver satisfatoriamente. Desejávamos que nosso grande professor Kropotkin estivesse entre nós, nem que por uma breve visita, para esclarecer alguns pontos complexos tirarmos assim proveito de sua inspiração e apoio intelectual. E então, que estímulo sua presença traria para o movimento!

Decidimos reduzir nosso custo de vida ao mínimo, devotando todos os ganhos para custear as despesas envolvidas em convidar Kropotkin a uma viagem pela América. O assunto foi discutido entusiasticamente nas reuniões do grupo, pelos mais ativos e devotados de nossos camaradas; todos eram unânimes no grande plano. Uma longa carta foi enviada ao nosso professor, inquirindo-o a vir para um circuito de conferências pela América e enfatizando a necessidade de sua presença.

Sua resposta negativa deu-nos um choque: estávamos tão certos de sua aceitação, tão convencidos da necessidade de sua vinda. Mas a admiração que sentíamos por ele só aumentou quando escutamos os motivos da recusa. Ele gostaria muito de poder vir – escreveu Kropotkin – e apreciava profundamente o espírito de nosso convite. Esperava visitar os Estados Unidos algum dia no futuro, e teria grande prazer em estar junto à camaradas tão bons. Mas naquele momento não podia custear a vinda por conta própria, e não usaria dinheiro do movimento para tal propósito.

Eu ponderei sobre suas palavras. Seu ponto de vista era justo, eu pensava, mas aplicava-se só às circunstâncias ordinárias. Seu caso, no entanto, eu considerava excepcional, e lamentava profundamente sua decisão de não vir. Mas seus motivos simbolizavam para mim o homem e a grandeza de sua natureza. Eu imaginava-o como o ideal de revolucionário e Anarquista.

Anos depois, enquanto estava na Western Penitentiary of Pensylvania, a esperança de ver nosso Velho e Grande Kropotkin, por um momento iluminou as trevas de minha cela. Amigos me notificaram que Peter havia chegado aos Estados Unidos pelo Canadá, onde havia participado de certo congresso de cientistas. Fui informado que Peter pretendia visitar-me, e passei a contar os dias e as horas aguardando sua tão esperada visita. Mas, ai!, a sorte estava contra o meu encontro com meu camarada e professor. Antes de ser chamado para ver meu querido visitante, mandaram-me ao gabinete do Guarda*. Ele segurava em suas mãos uma carta, na qual reconheci a pequena e nítida escrita de Peter. Sobre o envelope, após o meu nome, Kropotkin havia escrito “Prisioneiro Político”.

O Guarda entrou em fúria. “Não há prisioneiros políticos em nosso país livre!”, ele rugiu. E de repente rasgou o envelope em pedaços. Eu me enfureci com essa profanação. E então se seguiu um caloroso argumento sobre a liberdade americana, no decurso do qual eu chamei o Guarda de mentiroso. Ele considerou aquilo lesa majestade e me exigiu que lhe pedisse desculpas. Me recusei. O resultado foi que ao invés de encontrar Peter, fui sentenciado a 7 dias de solitária, numa cela de 2 por quatro pés, absolutamente escura, 15 pés abaixo da terra, e com uma pequena fatia de pão como ração diária.

Isso foi por volta do ano de 1895. Nos anos seguintes, Peter Kropotkin visitou a América repetidas vezes, mas nunca tive a oportunidade de vê-lo, sobretudo porque cumpria uma pena, em que por dez anos fui privado de visitas e não me era permitido ver quem quer que seja. Um quarto de século teve de se passar antes que eu pudesse tomar as mãos de minha companheira entre as minhas. Foi na Rússia, em março de 1920 que encontrei Kropotkin pela primeira vez. Ele vivia em Dmitrov, uma cidadezinha a 60 verats de Moscou. Eu me encontrava então em Petrogrado (Leningrado), e as condições da ferrovia eram tais que viajar do Norte à Dmitrov estava fora de questão. Depois, tive a chance de ir a Moscou, onde fiquei sabendo que o Governo havia feito certos arranjos para permitir que o editor do London Daily Herald, George Lansbury e um de seus colaboradores, visitassem Kropotkin em Dmitrov. Eu juntamente com os camaradas Emma Goldman e A. Schapiro, tiramos vantagem dessa oportunidade.

O encontro com “celebridades” é geralmente desapontador: raramente a realidade bate com a figura de nossa imaginação. Mas no caso de Kropotkin não foi assim; ambos fisicamente e espiritualmente ele correspondia quase exatamente ao retrato mental que tinha feito dele. Aparentava notoriedade como sua fotografia, olhos amáveis, com seu doce sorriso e barba farta. Cada vez que Kropotkin entrava na sala, parecia iluminá-la com sua presença. A marca de idealista era tão impressionante nele que a espiritualidade de sua personalidade podia quase ser sentida. Mas eu ficava chocado com a visão de seu definhamento e debilitamento.

Kropotkin recebia merenda acadêmica, que era consideravelmente melhor do que a ração destinada aos cidadãos comuns. Mas estava longe do suficiente para manter-se vivo e era uma batalha afugentar o lobo [da fome] porta afora. Questões de gasolina e iluminação eram também matéria de constante agitação. Os invernos eram severos e a madeira muito escassa; querosene difícil de procurar, e se considerava luxúria queimar mais de uma lamparina por casa. Esta falta era particularmente sentida por Kropotkin; e interferiu enormemente em seu labor literário.

A família de Kropotkin por diversas vezes foi desalojada de sua casa em Moscou, pois suas dependências eram requisitadas [sic] aos propósitos do governo. Então se decidiram mudar para Dmitrov. Ficava só a meia centena de verats da capital, mas bem que poderia ficar a mil milhas de distância, tamanho isolamento em que se encontrava Kropotkin. Seus amigos raramente podiam visitá-lo; notícias do mundo Ocidental, trabalhos científicos, ou publicações estrangeiras eram inalcançáveis. Naturalmente, Kropotkin sentia profundamente a falta de companhia intelectual e relaxamento mental.

Eu estava ansioso para aprender com suas visões em torno da situação da Rússia, mas logo compreendi que Peter não se sentia livre para expressar-se na presença dos visitantes ingleses. A conversação, portanto, era de caráter geral. Mas uma de suas observações foi muito significativa e me deu a chave de sua atitude. “Eles mostraram”, disse ele referindo-se aos Bolcheviques, “como a Revolução não deve ser feita”. Eu sabia, naturalmente, que como Anarquista, Kropotkin não aceitaria nenhuma posição de Governo, mas queria aprender o porque dele não participar da reconstrução econômica da Rússia. Embora fisicamente velho e fraco, seus conselhos e sugestões seriam muito válidos para a Revolução, e sua influência seria de grande vantagem e encorajamento para o movimento Anarquista. Acima de tudo, eu tinha interesse em ouvir suas idéias positivas sobre a conduta da Revolução. O que até então tinha ouvido da oposição revolucionária, em sua maioria, eram críticas, carecendo da útil construtividade.

A manhã se passou numa conversa desconexa sobre as atividades no front, o crime do bloco aliado recusando remédios aos doentes, e a disseminação de doenças resultando das condições insalubres e da escassez de alimentos. Kropotkin parecia cansado, aparentemente exausto pela mera presença dos visitantes. Estava velho e fraco; e eu temia que, sob tais condições, não vivesse por muito tempo. Estava evidentemente subnutrido, embora tenha dito que os Anarquistas da Ucrânia tentavam facilitar sua vida, suprindo-o com farinha e outros produtos. Quando Makhno ainda era amigável com os Bolcheviques, também se habilitou a enviar provisões. Para não cansar muito Peter, deixamo-lo mais cedo.

Alguns meses depois, tive outra oportunidade de visitar nosso velho camarada. Era verão e Peter parecia ter revivido com a ressurreição da Natureza. Parecia mais jovem, com boa saúde e cheio do espírito de juventude. Sem a presença dos estrangeiros, como o visitante inglês jornalista, ele sentia-se em casa, e conversávamos livremente sobre as condições russas, e sobre suas atitudes e perspectivas para o futuro. Era o genial e Velho Peter novamente, com um fino senso de humor, afiadas observações e a mais generosa humanidade. Em primeiro momento ele repreendeu-me por minha postura contra a Guerra, mas mudou rapidamente de assunto para canais menos perigosos. A Rússia era o principal ponto de nossa discussão. As condições eram terríveis, como todos concordavam, e a Ditadura era o maior dos crimes Bolcheviques. Mas não havia razão para perder a fé, me assegurava ele. A Revolução e as massas são maiores que qualquer Partido político e suas maquinações. Este último pode triunfar temporariamente, mas o coração das massas russas era incorruptível e chegaria por si mesmo ao claro entendimento do mal da Ditadura e da tirania Bolchevique. A atual vida russa, dizia ele, é uma condição artificial forçada pela classe governante. O governo de um pequeno Partido político assentado em falsas teorias, métodos violentos, erros medonhos e ineficiência generalizada. Estavam suprimindo a própria expressão da vontade e da iniciativa do povo que, sozinhas, poderiam reconstruir a arruinada vida econômica do país. A atitude estúpida dos Poderes Aliados, o bloqueio e os ataques à Revolução pelos intervencionistas, estavam ajudando a reforçar o poder do regime Comunista. Mas as coisas mudariam quando as massas despertassem para a compreensão de que ninguém, nenhum Partido político ou grupelho governamental deveria ter a permissão de, no futuro, monopolizar a Revolução, controlá-la, ou dirigi-la, pois tal intento inevitavelmente resultaria na morte da própria revolução.

Discutimos várias outras fases da Revolução naquela ocasião. Kropotkin enfatizou particularmente o lado construtivo das revoluções, e especialmente que a organização da vida econômica deveria ser tratada como a primeira e maior necessidade de uma revolução, como fundamento de sua existência e de seu desenvolvimento. Este pensamento, ele quis imprimir mais forçosamente nos próprios camaradas, para servir de guia nas grandes lutas vindouras do proletariado internacional.

Minhas visitas ao nosso querido Peter foram um prazer, intelectual e espiritualmente. Eu estava deixando a Ucrânia para uma longa viagem em prol do Museu da Revolução de Petrogrado, mas ainda esperava por muitas outras visitas ao nosso velho e bravo professor de cérebro e coração tão maravilhosos. Não era para ser. Morreu alguns meses depois, a 8 de fevereiro de 1921. Só pude alcançar seu leito a tempo de dizer ao morto meu último adeus. Um grande Homem, um grande Anarquista tinha partido.

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Nota do Editor *) O Guarda é o governante da prisão e seu ditador absoluto.

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This manuscript is part of the International Institute of Social History’s Alexander Berkman Archive and appears in Anarchy Archives with IISH’s permission.

LITERATURA ANARQUISTA
Tradução: José Paulo M. Souza
jxpxster@gmail.com